sexta-feira, abril 14, 2017

O PERFUME DE NICODEMOS...


(Jesus Descido da Cruz de Sieger Koder)

Nietzsche, filósofo e proclamador da ‘morte de Deus’, escreveu um dia que ‘os cristãos não têm rosto de gente salva!’...talvez inspirado pelo ar sombrio com que muitos dos cristãos, no seu tempo (e no nosso!), se dirigem para as Igrejas, pelo menos neste dia de sexta-feira santa...

Não é fácil acolher um Deus cuja omnipotência se revela no Amor que oferece recomeço...os nossos corações estão demasiados habituados a uma ‘espiritualidade do sepulcro’ cheia de passado, de morte, de muitos silêncios ensurdecedores que habitam nossos corações e são fruto daquela ‘raivazinha de estimação’ que teimamos guardar, acumular, ampliar. As nossas rotinas anseiam, na maioria das vezes, por um Deus que faça ‘a nossa vontade’; os nossos projetos constroem-se habitualmente na auto-referencialidade, como se o nosso umbigo fosse o centro do universo...

O Deus de Jesus Cristo, que hoje se revela a nós como ‘Amor-Crucificado’, dá morte à idolatria que tantas vezes nos habita e nos faz pensar que Ele é apenas um ‘super-homem’ ou um ‘deus sádico’ indiferente às nossas dores e angústias. Isaías recorda-nos que ‘pelas suas chagas fomos curados’ e assim nos revela que um Deus impassível é um Deus impossível! Nenhum dos nossos sofrimentos lhe é indiferente, não há dor que Ele não conheça pelo nome. Solidário conosco ‘a partir de baixo’ faz-nos experimentar um amor (e)terno, que é dom do Alto, mas que não nos sufoca. É Amor que salva e cura. Amor que abraça e transforma. Amor que não julga, Amor que levanta.

Mas voltemos ao(s) rosto(s). Durante a celebração da Paixão há um personagem que aparece quase a fechar o Evangelho e que facilmente passa despercebido, Nicodemos. Sim, aquele que durante a noite foi ao encontro de Jesus e que se ‘escandalizou’ quando o Mestre lhe disse que precisava ‘nascer de novo’. Deixámo-lo no capítulo 3 do Evangelho de João e hoje, no capítulo 19, voltamos a reencontrá-lo. Ainda com ‘muita vergonha na cara’, ei-lo que chega carregado de perfume, 32, 7 kg de resina de mirra e alóes moído!...esta ‘medida’, tão pesada e grandiosa, é sinal de que para ele tinha sido dita ‘a última palavra’. A morte parecia, mais uma vez, encerrar uma história que havia trazido para a luz os cegos, dado esperança aos desesperados, curado as feridas dos enfermos, feito saborear o perdão aos pecadores...era portanto necessário ‘ungir em excesso’ para que os maus odores da decomposição mortal não voltassem a trazer a lembrança da desilusão...e quantas vezes o nosso caminho Pascal é tão cheio desta ‘unção nicodémica’!

O que Nicodemos havia esquecido (e nós também!) é que o caminho Pascal de Jesus passa sim pela morte, mas não fica agrilhoado nela. Diante do Amor “não há morte que nos mate”, não há sepulcro que nos detenha, a morte “não é mais um castigo, mas um esplendoroso ato de amor e de perdão, o termo de toda a ausência de comunhão e de toda a solidão. A condenação é transformada em perdão” (Paulus Tomanini).

Se Nicodemos se (re)lembrasse da lição do Mestre: “Deus amou tanto o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna. De facto, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 16-17), teria perdido a vergonha na cara e, com um Rosto Salvo, cheio de Páscoa no coração, iria carregado de perfume não para ungir o morto, mas para celebrar a Vida...

Agora que a celebração já passou e temos um dia de ‘silêncio’ pela frente...talvez valha a pena pensar nisto. Bom caminho!

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